Pires e Albuquerque, Minas Gerais – O antigo distrito de Bocaiúva, incrustado na região Norte Mineira, ainda respira lendas de teor macabro, a exemplo de lobisomens e toda sorte de tralha sinistra que assusta gente graúda. Não o sitiante Nem Pimenta, homem destemido. Daqueles que topa ver tudo, apenas para comprovar se vai dar conta do recado…
Nem costumava dizer que andou atirando em lobisomens e outras coisas ruins que tentaram assombrá-lo no vai e vem noturno entre seu sítio e a pacata comunidade rural. “Minha carabina não falha”, sempre diz.
E foi assim que o nobre sitiante, conhecido por andar alta madrugada a cavalo por paragens mortas da temida região, resolveu ir mais além, adentrando em caminhos sinuosos que desembocam na “alta” rodovia 135 à procura de agito festivo.
Em tempo: a velha comunidade distrital fica localizada numa baixada intrigante, quase plana; ainda assim, foi rebatizada de Alto Belo – viva contradição à sua realidade de desdentada de morros…
Pois bem…
No trote cadenciado do cavalo Passarinho, o vaqueiro Nem, certa noite de lua cheia, creio que em plena Quaresma, escutou nítida batucada de forró mais adiante, não sabendo precisar a distância.
Nesse momento, ele acabara de transpor uma área de mata fechada, e o próprio cavalo Passarinho, já com muitos anos no lombo, animal cansado, encontrava dificuldades para se locomover por trilhas insossas no entorno de Pires.
Depois de transpor rampa amena, Nem finalmente pôde vislumbrar a origem de todo aquele “borogodó” – a festança que ouvira lá atrás. E estava sendo realizada bem numa encruzilhada, estranhou…
Ele apressou o pobre Passarinho para chegar logo à encruzilhada, já prevendo que teria cachaça ali e muita moça bonita. Bons anos de juventude: Nem já passou dos 80…
Mal apeou, o sitiante foi convidado por duas lindas morenas para se acomodar num banco imenso, e lá estavam mais garotas assanhadas, que sorriram faceiras no ato do seu tímido cumprimento. Vai que fossem casadas…
Mais músicas rolaram na vitrola, reforçadas por batidão agitado de tambor e violão. Nem se sentiu em casa, feliz por ter encontrado ambiente tão prazeroso no final de noite. Também lhe serviram caldo de peixe, que bom!
De repente, surgiu um rapaz garboso, sorridente, e pediu que ele cedesse uma das moças para dançar. Nem não pestanejou ao estender os braços,. em sinal de simpático consentimento. Afinal, as mulheres ali não eram nada dele, e vai que aquele desconhecido estava fazendo algum teste, para saber se era pessoa confiável…
O rapaz portava boné vermelho e roupas elegantes, talvez da moda da cidade, pensou ele. Os sapatos eram estranhamente finos, mas devia ter pés pequenos.
O jovem demonstrou ser bom dançarino, e conduziu as garotas pelo salão, de forma maviosa. Nem o admirou secretamente, pois queria saber dançar daquela forma também…
Vendo que as meninas o cercavam, sem dar tréguas entre uma música e outra, Nem sentiu-se quase inferiorizado perante a opulência dançarina do jovem desconhecido.
Preferiu, até para disfarçar, fechar os olhos um pouco, dissimulando cansaço e relaxamento.
A música prosseguiu forte, e ainda que estivesse com os olhos cerrados, ele sentiu ardência do pó levantado pelas dançarinas. Ao entreabrir as pálpebras, viu apenas vultos esvoaçando passos ágeis…
De relance, viu o rapaz alinhado se aproximando para cumprimentá-lo, e sorriu para retribuir. O jovem retirou o chapéu, e Nem pôde ver dois chifrinhos. Mas bateu mais sono e esqueceu tal detalhe…
Nem teria passado o restante da noite ali se a música não tivesse sido encerrada de repente. Foi quando forçou para abrir os olhos, pensando em tomar mais umas talagadas. antes de partir.
Para seu espanto, ele se encontrava completamente sozinho na encruzilhada, que nem banco tinha. Estava sentado num tronco partido de árvore.
Nem olhou e olhou procurando, e nada de festa, equipamentos de som, gente, garotas e nem o rapaz galanteador, que tirou para dançar todas as garotas que compartilhavam seu banco. Que banco?!
Nem não entendeu bulufas, e levantou-se para procurar mais vestígios da animada festa da qual jura ter participado por alguns instantes. Mas nada havia ali que indicasse algum evento do tipo. Inclusive, nem marcas de passos na extensa manta poeirenta. Além das suas pegadas próximas, só marcas de pés de bode…
O cavalo Passarinho, de maneira mansa, aproximou-se como quem dissesse para irem embora logo, e Nem entendeu seu recado. Montou no animal e partiu, acreditando piamente que participou mesmo foi de uma festa do além, com diabo e tudo.
A imagem dos chifrinhos do rapaz nunca saiu de sua cabeça…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista